quinta-feira, 10 de junho de 2010

Rachel Getting Married



Teoricamente, poucas coisas poderiam ser pior que isso: um drama familiar, comprido, arrastado e, pior ainda, protagonizado por Anne Hathaway, a menina chatinha de vários filmes bobos como Bride Wars e O Diabo Veste Prada.

Eu não poderia estar mais enganado.

Rachel Getting Married não é um filme fácil, nem faz muitas concessões ao cinemão americano com o qual estamos acostumados. É um filme pequeno, porém precioso, que joga o espectador dentro da cena, fazendo-o sentar no canto da sala onde os personagens tentam se amar e se entender ou, pelo menos, no mínimo, se suportar apesar de tudo.

A história não tem nada extraordinário: Kym, uma jovem com histórico de abuso de substâncias e adição, internada há vários meses em diversas clínicas de rehab, sai durante o final de semana para voltar para casa para acompanhar o casamento de sua irmã mais velha Rachel. A casa está cheia de amigos, família e alegria e a chegada da moça-problema vai reabrir antigas feridas e traumas no interior desse lar. Ok.

A meneira como essa história é contada, porém, aliada a diversos personagens e interpretações memoráveis, fez desse um dos melhores filmes que assisti recentemente. Tenho pensado nele um bocado nos últimos dias.

Começando pela já citada Hathaway, que fez uma escolha bastante ousada em sua carreira de boa-moça hollywoodiana. Kym é alguém absolutamente desagradável, para dizer o mínimo. Tenta-se, mas é muito difícil simpatizar com ela. Ela é completamente absorta em si mesma, egoísta, manipuladora, mentirosa e egocêntrica. Ela desperta em você um mix de compaixão, antipatia e pena. A dinâmica da família sempre girou em torno de seus problemas com drogas e do caos que o seu mundinho negro sempre trouxe a todos ao seu redor e, aparentemente, ela sente-se deslocada agora que as drogas não estão – pelo menos não ativamente – no centro de seu universo. Como continuar sendo notada, ela parece se perguntar.
Nesse final de semana, todas as atenções estão voltadas para sua irmã, com seus amigos por todos os lados, felicidade no ar e palavras carinhosas voltadas aos noivos. Kym e todos os seus problemas, seu sarcasmo compulsivo, seu sentido de auto-destruição, sua necessidade de atenção e sua auto-indulgência estão em segundo plano e isso a enlouquece. Lembrou-me, inclusive, de algumas pessoas que conheço.
Há ainda uma tragédia familiar em que Kym esteve envolvida no passado e, ficamos sabendo depois, foi determinante para a implosão final dos relacionamentos dos envolvidos. Morte, crises, brigas, divórcio, merda atrás de merda. E, achei bastante corajoso, a disposição daquela família de tentar continuar se amando apesar de tudo.

O que mais me chamou a atenção, juntamente com a interpretação de Anne Hathaway, foi a imparcialidade da câmera que segue esses dias na casa da família. Os takes são longos, a câmera segue os personagens onde quer que eles vão – Anne Hathaway aparece até sentada no vaso, fazendo xixi num copinho - e fica ali, parada, acompanhando aqueles momentos todos sem malabarismos, sem desnecessárias edições ousadas. Ela te leva para dentro da cena, vivendo aquilo juntamente com os presentes.
Algumas cenas são particularmente memoráveis: a do jantar de ensaio para o casamento, com os convidados dando depoimentos sobre os noivos, lembrando de momentos carinhosos passados juntos e Kym no canto da mesa, sem ter absolutamente nada para dizer – afinal, ela nunca esteve realmente por perto - incomodada por não estar no centro do palco, como normalmente acontece. Seu depoimento é uma das coisas mais constrangedoras que assisti em algum tempo. Parece que não vai acabar nunca.
Outra cena que me impressionou bastante foi a da reunião dos Narcóticos Anônimos que Kym frequenta. A câmera imparcial está ali, acompanhando aquelas pessoas e seus depoimentos, histórias terríveis de decadência e perda com momentos tocantes de pessoas que estiveram no fundo do poço e hoje se reergueram e seguem suas vidas. Sou particularmente sensível ao tema.
O ponto é que, nesse momento, percebemos o tamanho do estrago que a adição causa na vida de seus possuidores não apenas quando ela se instala e no seu auge, mas também enquanto ela está sendo combatida. Percebemos nesse momento, no meio daqueles momentos terríveis sendo descritos, o quanto Kym está desconectada do nosso “mundo real”, onde temos que acordar cedo, estudar, trabalhar, nos casar, ter filhos e pagar contas.
É muito triste, mas nos deixa com uma dúvida: os traços negativos de sua personalidade são decorrentes do seu histórico de dependência química ou o contrário? Esse mundo negro em que Kym se encontra é causado pelas drogas ou as drogas apenas dão uma justificativa para uma personalidade que sempre foi egoísta e egocêntrica? O filme não se preocupa em dar nenhum tipo de explicação, ainda bem.

O diretor Jonathan Demme (O Silêncio dos Inocentes e Filadélfia) acha ainda uma saída excelente para contrabalancear todos os momentos negros que existem no filme. Um diretor conhecido por seu trabalho com filmagem de música – alguns clips de Bruce Springsteen e Pretenders, um documentário sobre Neil Young – faz o mesmo aqui. O noivo e muitos de seus amigos são músicos profissionais, o que deixa o ambiente muito mais leve em diversos momentos. A festa de casamento parece ser divertidíssima, com muita música e performances excelentes.
Preciso ir atrás, além do DVD, dessa trilha sonora.

Dramas familiares realmente não são para todos os momentos, é verdade. Porém, quando precisamos de algumas faíscas de realidade aliados a, vamos lá, arte, Rachel Getting Married é uma ótima experiência.