segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Selvagens, de Don Winslow




O papel de inimigo do momento que já pertenceu a marcianos, comunistas e terroristas no imaginário da ficção norte-americana parece ter sido tomado nos últimos tempos pelos cartéis de drogas mexicanos, com sua violência estilizada e ganância sem fim.  Sem entrar no mérito da questão real do tráfico de drogas nas fronteiras dos dois países - sobre o assunto, recomendo o assustador Amexica, do jornalista Ed Vulliamy - a questão da fluidez entre as fronteiras, o pensamento capitalista de mercado e lucro a qualquer preço levado às últimas consequências, a violência gráfica e a proximidade geográfica e cultural é prato cheio para escritores de ficção.  
Cinematograficamente, Traffic, Machete, Breaking Bad, entre muitos outros, já nos habituaram ao cenário desértico entre fronteiras, jovens inexperientes tornando-se assassinos cruéis, cabeças expostas em rodovias e traficantes bigodudos e bronzeados com paletós brancos em suas mansões autorizando execuções ao celular.
Uma das últimas boas contribuições para o gênero é o livro Selvagens (Savages), de Don Winslow, de 2010, transformado em filme recentemente por Oliver Stone, com roteiro do próprio autor.

Selvagens é um livro rápido de ler, com um texto esperto escrito quase como um roteiro de cinema (ainda não vi o filme de Stone para comparar).  
Na trama, Ben e Chon são amigos que produzem a melhor maconha do sul da Califórnia - as descrições das milhares de propriedades das milhares de variedades do produto que eles comercializam criam algumas das melhores sequências do livro - e além de dividirem os negócios, também dividem a mesma mulher, O. (no filme, interpretada pela tchutchuca Blake Lively).  Ben é o empreendedor, o cultivador, o homem de negócios, e Chon é o muthafocka que toma as decisões difíceis da parceria e de um negócio, bem, selvagem.  Em algum momento, seus negócios acabam entrando em conflito com os interesses de expansão do Cartel de Baja nos Estados Unidos.  E aí a história começa.

Don Winslow tem um estilo bastante ágil de escrever e não se prende demais a motivações internas ou monólogos interiores de seus personagens, preferindo focar na ação e nas consequências de seus atos.  Dessa maneira, o livro perde em profundidade, mas ganha em dinamismo.  Em determinado momento, vira quase um filme de aventura estilo Sessão da Tarde, com o que isso tem de bom e de ruim.
O texto de Winslow, entretanto, vale a leitura: ele é ligeiro, sexy e, na maioria do tempo, muito engraçado. É um texto permeado de ironia, de senso de absurdo e de um notável carinho por seus personagens, de ambos os lados da fronteira e da lei.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Beans On Toast tentando dizer a verdade



Jay é inglês, de Essex, gosta de jogar videogame e tocar violão.  Sua voz já está bem arrebentada pelo cigarro, drogas e cerveja.  Jay está no final de seus vinte anos, começo dos trinta, e está ficando careca.  Jay bebe muito, toma mais drogas do que deveria e não é nada envergonhado disso.  Ele gostava de Laura Marling de um jeito no mínimo inadequado quando ela tinha 16 anos.  Saiu uma vez com uma moça de 38 quando ele tinha 26.  Jay comprou um computador Apple uma vez e adorou, só ficou um pouco preocupado onde ele havia sido construído.  Jay adora ir a festivais de música e não se importa com os banheiros sujos.  Ele namora Lizzie Bee e gosta bastante dela.  Jay foi grunge, adora rock n'roll, reggae, bluegrass e country, Henry Rollins, Wu Tang Clan, Counting Crows e Fats Domino.  Odeia Tony Blair e George W. Bush.  Uma vez ele ficou bem puto de ciúme quando sua namorada saiu numa viagem de seis semanas pelo Mexico.  Jay é um cara com senso de humor.  A única coisa que Jay pede desesperadamente é que o deixem fumar no pub.  Seu objetivo na vida é viajar por aí, tocar suas canções e vender alguns CDs que o permita continuar fazendo isso.

O Jay das canções parece ser um cara bem legal.

Jay é o homem por trás do projeto Beans On Toast e já tem três discos lançados.  Sua música é a mais simples possível, a grande maioria ao violão, um piano aqui e ali, uma marcação de bateria e um backing vocal e olhe lá.  Basicamente música de bar, pra cantar junto.
A beleza da coisa toda está justamente na simplicidade e na honestidade quase punk que ecoa de seu trabalho.  É música direta, urbana, sobre o hoje e sobre o agora, de um ponto de vista absolutamente pessoal, com todas as contradições e limitações que isso oferece.  É quase um blog em forma de canções: ele fala e tem opinião sobre tudo e não tem nenhum interesse em aprofundar conhecimentos ou formular teorias.  É aquela coisa de "é assim porque eu acho que é assim" e tudo bem.  Ninguém precisa concordar em tudo.
Ele frequentemente é tema de suas próprias canções, em forma de histórias engraçadíssimas que sempre envolvem mulheres, drogas e bebedeiras.  Esse estilo autobiográfico, autodepreciativo e irônico lembra bastante o trabalho de outros autores.  Penso bastante nos quadrinhos de Harvey Pekar e Robert Crumb, especialmente o American Splendor, de Chester Brown e da série de TV de Louis CK, Louie.  Para falar sobre o mundo, comece falando sobre sua rua, certo?

Seu disco de estréia, Standing On A Chair, é um disco duplo, com 50 (!!) canções no total, onde Jay canta sobre tudo, de cocaína a Saddam Hussein, do colapso da indústria musical a juventude revoltada inglesa.   Os discos seguintes, Writing On The Wall e Trying To Tell The Truth, já possuem formatos mais modestos, mas o conteúdo continua o mesmo.  O amigo Frank Turner produziu esse último, e já dá pra perceber uma tentativa de dar uma mínima sofisticada no som do Beans On Toast e o resultado é excelente, mantendo a tosquice onde ela deve permanecer.

Num mundo onde uma estratégia eficiente de marketing e uma boa imagem institucional é tão importante para um artista quanto achar os acordes adequados para uma canção, é um alívio passar algumas horas escutando as  histórias de Jay, tocadas de maneira direta, como ele sabe fazer, e não se importando com isso.

Como era mesmo aquela história punk do "faça você mesmo"?










segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Miriam




A beleza de algumas canções reside justamente no que elas não dizem.
Miriam está no último álbum da Norah Jones, Little Broken Hearts, lançado esse ano e produzido pelo bamba Danger Mouse.  O disco inteiro é incrível, mostrando uma faceta mais experimental e áspera da cantora, com canções intimistas e climáticas.  Embora não tenha recebido críticas muito efusivas na ocasião de seu lançamento, é um disco que vai crescendo no ouvinte a cada audição e no final se tem a impressão que Norah Jones acabou apresentando um de seus álbuns mais sólidos e pessoais.  Pessoalmente, está entre os meus favoritos da cantora, ao lado do The Fall

Miriam não estava entre as minhas preferidas do disco mas o vídeo para ela lançado recentemente corrigiu esse deslize.  Dirigido por Philip Andelman, o trabalho visual por si só já é impressionante.  Desde o ritmo de câmera meio Terrence Malick até o final surpreendente, esse é daqueles que te faz querer assistir mais de uma vez (ou umas duzentas, no meu caso).  Norah mostra que suas incursões cinematográficas a deixaram bem confortável diante das câmeras e ela entrega o mesmo auto-controle freak e o olhar injetado que demonstra com a voz na canção - além de estar linda de morrer.  Dá medo da mulher, mas de um jeito bom...

Quanto à música, aí também é coisa de gente grande.  Uma saída fácil para uma canção que aborda o tema que aborda seria cair para uma interpretação rasgada e exagerada.  Afinal, a personagem da canção está falando com alguém que aprontou com seu homem, certo?  O controle da voz e da instrumentação econômica, as palavras pronunciadas pausadamente, a aparente calma e assertividade com que é endereçada à Miriam do título são os grandes trunfos para chegar nesse clima claustrofóbico e incômodo que a canção alcança.  
O ouvinte entende que a coisa ficou realmente séria na última estrofe da música e nos últimos segundos do vídeo.  Coisa foda!



Miriam
That's such a pretty name
I'm gonna say it when
I'll make you cry

Miriam
You know you done me wrong
I'm gonna smile when
You say goodbye

Now I'm not the jealous type
Never been the killing kind
But you know I know what you did
So don't put up a fight

Miriam
When you were having fun
In my big pretty house
Did you think twice?

Miriam
Was it a game to you?
Was it a game to him?
Don't tell me lies

I know he said it's not your fault
But I don't believe that's true
I've punished him for being too weak
Now I've saved the best for you

And I'm trying not to hurt you
'Cause you might not be that bad
But it takes a lot to make me go this mad

Oh Miriam
That's such a pretty name
And I'll keep saying it
Until you die

Miriam
You know you done me wrong
I'm gonna smile when
You say goodbye

You know you done me wrong
I'm gonna smile when
I take your life





PS: Não que venha muito ao caso, mas fico me perguntando se a tal Miriam é real ou não.  Se for, fico imaginando que foda deve ser quando uma das mais famosas cantoras do mundo faz uma música e um vídeo falando o seu nome pro mundo inteiro dizendo que vai te matar porque você mexeu com o cara dela...  




terça-feira, 31 de julho de 2012

Frank Turner - Love Ire & Song




Não sei dizer em que momento exatamente o sonho morreu.  O fato é que em algum momento aquela cartilha do punk - ou do rock em geral -  do faça você mesmo, das canções vigorosas, sinceras e diretas, da juventude urbana insatisfeita, virou referência para jingles de refrigerante e trilhas sonoras de eventos corporativos sobre skate, tatuagem ou marcas de roupas. 
Da mesma maneira que o rap - e praticamente toda expressão cultural jovem das últimas décadas - o rock seguiu seu caminho, evoluiu, criou seu mercado, sua iconografia, seus nichos, vertentes e subvertentes e foi decepcionando os que ainda acreditavam numa forma de expressão genuína baseado em sinceridade e urgência de fazer acontecer.

Essa decepção está ligada também ao nosso próprio amadurecimento e à complexidade crescente que começamos a vivenciar em nossos pontos de vista conforme envelhecemos.  Quando somos jovens, achamos que podemos mudar o mundo com três acordes de guitarra, nossos inimigos são claros e nossa causa é justa.  Com o tempo, percebemos que existem muito mais tons de cinza entre nosso preto e branco do que gostaríamos de admitir.  Percebemos que não existe uma coisa estática e ameaçadora chamada “sistema” onde podemos descontar nossas frustrações e culpar por nossa inabilidade de explicar um mundo com nuances, interesses e camadas demais.  O rock continua sendo vendido - nesse caso, como um sabão em pó ou um cereal matinal - como “música para jovens” e esse rótulo simplesmente serve de desculpa para jogar nesse saco uma legião de músicos e bandas medíocres - alguns mais bem intencionados que outros - que confundem simplicidade com tosquice, ser direto com ser tolo, com claros interesses comerciais.

Sinto-me frequentemente dividido nesse duplipensar.  Cresci sob a mitologia do rock n’roll.  Meus heróis empunhavam violões e guitarras, se expunham, chocavam e levavam sua expressão ao limite, desafiando seus ouvintes e seu tempo.  Ao mesmo tempo que quero acreditar que somos capazes de fazer a diferença, de que qualquer um com vontade de mudanças pode efetivamente sê-la, sou frequentemente confrontado com meu próprio ceticismo e desconfiança de qualquer um que realmente esteja tentando. 
E, vamos admitir, meus interesses, receios e anseios também mudaram com o tempo.  Hoje eu me preocupo com meu lugar no mundo, com meus amigos, com amor, com ganhar dinheiro para viver minha vida com algo que me satisfaça e que não exija minha alma em retorno, todos esses dilemas morais com que vamos topando conforme vamos vivendo.  Minha raiva adolescente foi gradualmente substituída por uma perplexidade com a vida e uma crescente aceitação da pessoa que me tornei.

Tudo isso, ao final, para falar de um disco que me fez parar para pensar em tudo isso.  O nome do disco é Love Ire & Song e o responsável por essa pérola é um inglês chamado Frank Turner.

Turner foi o frontman de uma banda de hardcore chamada Million Dead e rapidamente seguiu por uma interessante carreira solo.  Love Ire & Song é seu segundo disco, de 2008, e despertou paixões na crítica especializada.

Frank Turner fez um disco clássico, baseado na cultura punk rock, mas com um resultado que extrapola essas definições de gênero.  Nota-se que seu repertório e suas referências são bem mais aprofundadas nos cânones e na iconografia do rock como músicas libertárias e enérgicas do que como mais uma gavetinha dessa cultura.  Dá pra ouvir ecos de trovadores folk, de indie rock, de hardcore e do grime, mas despido de ornamentações e reduzido ao essencial.  O esqueleto das canções baseiam-se em violão, letras diretas e um senso de construção pop invejável.  Algumas canções já contam com a banda completa.

Love Ire & Song é um disco sobre amadurecimento, sobre crescer sendo quem você é, sobre prioridades e sobre olhar para o futuro.  Suas letras são ao mesmo tempo extremamente confessionais e bastante abrangentes.  Nada é cabeçudo, panfletário ou doutrinador.  Ele compartilha com o ouvinte suas próprias experiências, deixando a interpretação livre. 
Na faixa que dá nome ao disco, ele se questiona sobre o que fazer quando suas certezas de outrora viraram fumaça (“And Punk Rock didn't live up to what I hoped that it could be, and all the things that I believed with all my heart when I was young are just coasters for beers and clean surfaces for drugs”), e segue pel

quinta-feira, 5 de julho de 2012




Nós somos uma geração privilegiada de corinthianos: nos meus 31 anos de vida assistimos a conquista dos 5 campeonatos brasileiros (lembrando que a piada que o Corinthians não tinha brasileiro foi até 1990), 3 Copas do Brasil, 9 títulos paulistas, um Mundial de Clubes da Fifa e uma LIBERTADORES.

Fico pensando naquela geração de 77, da fila, de quando a torcida só crescia sem ganhar UM ÚNICO TÍTULO POR 23 ANOS.  Sempre fomos o azarão, o underdog, o clube que nunca precisou de títulos para ter uma das mais fiéis e apaixonadas torcidas que o futebol já presenciou.

Hoje o Corinthians é um dos mais ricos, bem administrados e estruturados clubes do país.  Fez uma campanha brilhante, invicta, e conquistou o título que faltava.  É um espelho do gigante que o Corinthians se tornou, um time que hoje olha de frente para qualquer equipe do mundo.

Mas o que eu vi ontem na Paulista foi o Corinthians que não tem departamento de marketing que construa.
Claro, a expectativa do título foi grande, o sofrimento também, esse título é histórico e talvez eu chame meu filho de Sheik Escobar, mas sabemos que não é isso.  Teremos em breve um estádio moderno, que já merecemos faz tempo, mas também não é isso.  Ontem, correndo com a bandeira, lágrimas nos olhos, vi uma multidão que, além de comemorar um título de futebol - merecidíssimo - comemoravam um jeito de ser, de torcer, de se relacionar com as dificuldades e com as derrotas, mostravam de um jeito barulhento o orgulho de fazer parte desse estilo de vida.

Eu ontem comemorei o meu orgulho de ser Corinthiano!!

Foi sem dúvida uma das melhores noites da minha vida.

Acho que eu tô meio deprimido hoje, agora que a adrenalina baixou.  Blue Thursday, acho...

PS: nosso prefeito havia proibido manifestações e comemorações na Avenida Paulista.  Um clube que criou a Democracia Corinthiana não pode levar isso a sério.  Chupa, Kassab!

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sobre Gatos e Pessoas (ou É Tudo a Mesma Coisa)





Estive de férias e na casa onde estava tinha um gato.

Sou do tipo fã de cachorros mas sempre achei a elegância, garbo e desapego dos bichanos bastante interessante.
Eu e o gato começamos a nos conhecer melhor, ele aparentemente foi com a minha cara e rapidamente já estávamos assistindo TV juntos, eu com o bicho no meu colo, enquanto coçava sua orelha.

Uma cena linda.

Um dia, de maneira completamente inesperada, o gato, no meu colo, arranhou a minha mão.
Minha primeira reação foi, muito puto e me sentindo traído, pensar: "Gato filha da puta!!  Tava aqui te fazendo carinho e você faz isso comigo??".
Comecei imediatamente a fazer um tratado mental de como esse bicho é traiçoeiro e pouco confiável, que não era surpresa que tanta gente não gostava de gatos e que algo que ataca a mão que o acaricia certamente tem algo de errado.
Foi no meio desse monólogo interno raivoso contra a natureza felina que percebi.

Era um gato.

Não era a primeira vez que isso acontecia e, se eu voltasse a conviver com gatos novamente, provavelmente não seria a última.

Gatos são assim, é como eles são.

Qualquer juízo de valor que eu tivesse seria patético na inutilidade de mudar qualquer aspecto de sua natureza.  Seria o mesmo que ficar puto por uma pomba voar ou por um cachorro abanar o rabo, mijar num poste ou morder outro cachorro.  É isso que eles fazem.  Eu posso dar o nome que eu quiser para o comportamento do bicho, é irrelevante.  Ele não poderia estar menos preocupado com os meus conceitos de lealdade e traição.
Nessa linha de raciocínio, lembrei de pessoas que me tinham feito mal no passado - ou que eu achei que tivessem me feito mal ou, no mínimo, não se comportaram da maneira que eu gostaria.  Pessoas em quem eu confiava e que contaram segredos meus. Ou inventaram histórias a meu respeito. Ou mentiram para mim. Daí percebi.

São pessoas.  Pessoas são assim.

Isso, claro, não se trata de uma constatação inequívoca que ninguém presta ou que estamos todos sozinhos num mundo cruel.  O ser humano é capaz de atos de extremo altruísmo e bondade, o amor existe e a coisa toda.  Também não quer dizer que não temos livre arbítrio e somos escravos de nossas naturezas mesquinhas. Nada disso.

Só não dá pra ficar indignado ou surpreso quando as pessoas agem como pessoas.

Como no caso do meu amigo gato.





PS: Eu e o gato eventualmente fizemos as pazes e ele voltou a ver TV dormindo no meu colo.
Mas ele tá fudido se vier tentar me arranhar de novo.



sexta-feira, 18 de maio de 2012

No Love Lost


Todos já passamos pela experiência de, ao achar uma foto antiga de si mesmo, ser transportado imediatamente para o momento em que a foto foi tirada: a roupa que vestíamos, com quem estávamos e em que momento nossas vidas estavam naquele momento.  
É bem possível que, hoje, olhando-nos congelados naquele instante, aquelas roupas não nos sirvam mais, as pessoas com quem estávamos eventualmente não estejam mais em nossas vidas e que estejamos em um lugar que não teríamos a menor possibilidade de imaginar que estaríamos no momento em que a foto foi batida.
Entretanto, nos identificamos e nos emocionamos ao nos vermos naquele momento.  Afinal, ainda somos nós ali, sorrindo para a câmera, com outras roupas, outras pessoas e outros sentimentos que, de maneira ou de outra, já não se justificam mais.  Mas, paradoxalmente, ainda existem vivos em algum lugar dentro de nós.

Pensei nisso ao saber que hoje é o aniversário de morte de Ian Curtis, que faleceu 32 anos atrás.

Não escuto Joy Division da maneira como costumava escutar nos anos finais de minha adolescência, porém o impacto que sua música teve em mim é algo que ficou desde então.  Foi provavelmente uma das maiores identificações que já tinha experimentado com uma expressão artística, talvez até hoje.
Tudo relacionado à banda, desde a escolha do nome à estrutura das canções, a postura dos músicos em suas apresentações e, infelizmente, a maneira como Ian Curtis escolheu terminar seus dias, até hoje é de uma coerência e verdade vistos poucas vezes no universo da música pop.

As canções refletiam com precisão a minha maneira de enxergar o mundo na época - e provavelmente muitas das impressões que carrego até hoje.  
Naquele momento de transição para uma vida adulta, subitamente ciente de que não havia nenhum pote de ouro no fim do arco-íris, mas ainda sem a bagagem emocional adequada para dar vazão àquele sentimento de perda casaram como mão e luva com as letras fortes, niilistas e profundamente pessoais de Curtis.  Sua voz transmitia uma tristeza agressiva e não-conformista.  Era punk, mas sem a pretensão de criticar o establishment ou introduzir novos valores baseados em raiva e anarquia: era a constatação viva e consciente de que o problema era outro e que não havia soluções simples.  A complexidade e a falibidade humana sempre seriam obstáculos para a obtenção de um lugar melhor para se viver.  Sem novidade, a canção mais conhecida do Joy Division possui o pungente título de Love Will Tear Us Apart.

O legado de Ian Curtis e do Joy Division foi fundamental para tudo o que seria da música pop nos próximos trinta anos (sem contar ainda a trajetória do New Order, fundada pelos remanescentes da banda após o suicídio de Curtis em 1980).  
Para mim, ficou uma voz que me vez enxergar o meu mundo com olhos abertos.