quinta-feira, 30 de abril de 2009

Em breve, em um cinema dentro de você

Gostava de enxergar sua vida como esse épico pessoal. Não entendia porque um cachorro dormindo ao sol, numa estrada empoeirada, era algo bonito de se ver e alguém tomando um café de manhã na padaria não era. Gostava de prestar atenção nas pequenas belezas do cotidiano, na tal da poesia do dia a dia. Passava os dias absorto, observando tudo o que acontecia ao seu redor, procurando sempre o melhor enquadramento em seus olhos para o que estava diante de si. Caprichava nas panorâmicas e nos closes, eram suas especialidades. Estava sempre filmando, tinha milhares e milhares de horas de video no arquivo de suas lembranças. Nunca se sabe quando elas seriam necessárias quando o filme final estivesse sendo montado.
Mas gostava mais ainda era de dirigir e editar sua própria vida no videoteipe de sua memória. Era ali onde ele mandava e desmandava. As lembranças eram obrigadas a servir a seus caprichos e a aparecer da maneira que melhor lhe convinha. No estúdio de sua memória, novas cores eram lançadas sobre personagens apagados, a maquiagem era corrigida, a trilha sonora correta era inserida, pontuando os momentos de maior dramaticidade ou dando um alívio cômico quando necessário.
Era um diretor autoral, um Woody Allen ou um Bergman de sua própria existência. As protagonista eram invariavelmente as mulheres que passaram por seu set e a trama sempre rodava ao redor das interações entre essas femme fatales e o personagem que representava, que sempre mudava de acordo com o tipo de filme que gostaria de ter na videoteca de seu cérebro. Dramas, comédias românticas, suspense e até alguns documentários sobre algumas esquisitices já estavam catalogados por seção na sua Blockbuster particular.
Claro que os subplots tinham sua importância e os personagens secundários também tinham seus momentos de brilhar mas, ele próprio admitia, eram sempre elas quem tinham as melhores falas, figurinos, além do próprio trailer e camarim. Ele fazia questão de providenciar tudo: como na filmagem daquele clássico com aquela atriz loira, linda, linda, hipnotizantes olhos azuis - que ficavam mais lindos ainda em cena - que representava a moça do interior, politizada e brigando por seu lugar ao sol na selva de pedra. A diva queria tudo, de centenas de toalhas brancas a M&M's vermelhos. Ele entregou tudo isso sorrindo, além do próprio orgulho e vaidade, que nem estavam no contrato. Não se importou em dar um extra para agradar sua estrela do momento.
Detestava quando sua autocinebiografia era confrontada pela tal realidade cinza e chata. "Aquela cena do beijo tinha sido perfeita: o enquadramento, a luz estavam perfeitos, o cenário era bastante adequado, o crescendo emocional que resultou naquela tensão no clímax. Estava até tocando Marvin Gaye, cacete!!". E às vezes vinha a versão oficial: "Dois bêbados com tesão se agarrando na rua". Relutava em aceitar isso, era simples demais, bobo demais. Ele se considerava o Don Corleone, o William Wallace ou o Vincent Vega de seus dramas pessoais. E suas estrelas eram suas próprias Mias Wallaces, Celines ou Clementines Kruczynskis, com toda a profundidade, drama e conflitos que sua existência exigia.
Ele continua assim até hoje. Diz que está montando o cast de sua próxima produção, tem avaliado algumas atrizes e trabalhando mais no roteiro - ele acha que tem furos demais que se chocariam com seus trabalhos prévios.
É o que ele faz melhor: seus próprios filmes, para a exigente platéia de si mesmo.

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