domingo, 23 de outubro de 2011

Bad As Me


Eu considero Tom Waits um sopro de lucidez nesses tempos surreais em que vivemos.  


Isso falando de um cara que faz uma música que não faz concessões, barulhenta, intensa mas absolutamente autêntica e original, diz bastante sobre a situação de música e arte por aí.


Uma observação do sr. Waits publicada hoje no The Guardian, sobre a suposta "liberdade" de escolha que temos hoje:



"They have removed the struggle to find anything. And therefore there is no genuine sense of discovery. Struggle is the first thing we know getting along the birth canal, out in the world. It's pretty basic. Book store owners and record store owners used to be oracles, in that way; you'd go in this dusty old place and they might point you toward something that would change your life. All that's gone"



Se tiver um minuto, vá atrás de suas entrevistas.  Qualquer uma.  De qualquer época.


Tom Waits lançou um disco novo esses dias, chama-se Bad As Me.  É uma coleção de 13 canções maravilhosas, com um agudo senso estético de desespero e beleza em meio ao caos.  Ele está ficando melhor com a idade e com o tempo, achou sua voz e o que quer dizer e consegue expressar-se com uma aparente simplicidade que apenas décadas de trabalho e de lapidações de canções conseguem fazer, como acontece apenas com os gênios.  E eu nunca uso essa palavra.


Ninguém vai escutar esse disco.  
Quem, por acaso tentar pelo hype em torno dele, vai desistir na terceira música, perguntar: "Por que ele canta assim?? Que coisa esquisita", apertar o shuffle do iTunes, que vai escolher uma música entre as milhões que estão ali, cair em qualquer merda, que pode ser de Lady Gaga a Lady Antebellum, enquanto fica no Facebook, recebendo e repassando coisas engraçadinhas, como um gato tocando piano ou a dica do seu horóscopo.


O interesse ou a vontade de se deixar impressionar pelo novo foi substituída pela necessidade de estar conectado e de dar risada antes de todo mundo sobre o último vídeo ou polêmica na internet, que pode ser uma atriz bêbada falando merda na área vip de um festival de música ou uma mina utilizando pão e maionese de maneira pouco ortodoxa.


Música virou barulhinho ambiente, algo que fica ali tocando enquanto você está ocupado fazendo outra coisa.  
Arte virou distração, uma coisa para te distrair e te relaxar.  Tem que ser fácil, mastigado, estrofe-estrofe-refrão-bridge-estrofe-refrão, simples, assobiável, capítulos curtos, engraçadinho, com um mercado específico e definido, muita figura e com um final que não te surpreenda.  
"Já temos para nos preocupar na vida, vou querer ver filme que me faça ficar triste??".  


Enquanto isso, Tom Waits está por aí, fazendo o que faz melhor.  
Suas canções e seus discos também ficarão, naquela prateleira empoeirada lá no fundo do sebo com a plaquinha "música de velho / música difícil".


Uma tristeza.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Free Rafinha

Para começar, eu não gosto do Rafinha Bastos.
As piadas do "homem mais influente do Twitter" costumam sempre despencar para o mau gosto, o palavrão gratuito e o riso nervoso e fácil do chocar simplesmente pelo chocar.  Da mesma forma, eu tenho sempre a tendência de não gostar de nada que se assemelhe vagamente a essa nova onda de shows de stand up brasileiros.  O ponto não é que me ofendem de qualquer forma ou que eu acredite que humor tem que ser feito de um jeito ou de outro.  Eu simplesmente acho chato pacas.

Comédia stand up é provavelmente das mais difíceis de serem feitas por necessitar de um ritmo, um vocabulário e de uma gama de idéias que normalmente as pessoas que se arriscam no gênero no Brasil simplesmente não possuem.
Claro que existem milhões de humoristas sem graça tentando fazer stand up em qualquer lugar, Estados Unidos incluso.  Porém, temos que admitir que os americanos, certamente os pais do formato, mostraram o que essa forma de humor tem de melhor: Eddie Murphy nos 80, George Carlin, Lenny Bruce e por aí vai elevaram o gênero stand up ao que ele tem de melhor.  E não se engane: nas apresentações de todos esses citados tem muito mais palavrão e termos chulos do que em qualquer apresentação de Rafinha ou congêneres.  A diferença é que, nesse caso, as palavras tem uma razão muito clara de estarem onde estão.  E isso é simplesmente uma opinião.

O humor brasileiro sempre foi calcado em gêneros, personagens.  A bicha, o negro, o gordo.  Nós sempre achamos mais engraçado rir do outro do que rir de nós mesmos, que é a alma da comédia stand up, aliás.  Rir do deficiente, da loira burra, do português é muito mais legal, certo?  Agora, veio falar de mim, a coisa aperta.
Lembra daquele video do YouTube que o "comediante de pé" brasileiro chega no palco, aponta o dedo pra alguém da platéia, chama um cara de gordo, ele sobe no palco e dá um soco no artista em questão?  Por aí....

Como todo mundo, tenho acompanhado a saga Rafinha Bastos x Wanessa Camargo e family.  Se você esteve em Marte nos últimos tempos: a moça tá grávida e Rafinha, querendo dizer que ela estava gostosa, disse em rede nacional, na bancada do programa CQC do qual é apresentador que "comeria ela e o bebê".  Uau!!  Engraçadíssimo, certo?  Até aí nenhuma novidade.
Um parênteses: a piada não é mais sem graça que qualquer uma do Zorra Total ou da Escolinha do Professor Raimundo que, bem lembramos, tinha entre seus personagens a gostosa burra, o judeu, o caipira ignorante, o árabe avarento e o índio, para citarmos alguns clássicos do repertório humorístico brasileiro.
A razão de considerarmos esse programa um clássico do humor brasileiro e a piada de Rafinha um caso de polícia me escapa agora.

Voltando à repercussão do caso.  Aparentemente, ele mexeu com a pessoa errada.  A tal da Wanessa é filha de um cantor sertanejo muito famoso e casada com um outro tal de Marcus Buaiz que, dizem, é um empresário fodão, amigo do Ronaldo Nazário (não confundir com o Ronaldo Fenômeno da Seleção e do meu Corinthians), influente na TV Bandeirantes e num monte de outros lugares e foi aí que o Rafinha se fudeu: foi afastado do CQC, perdeu contrato de patrocínios e foi hostilizado pela "opinião pública" como o novo Herodes do pedaço.  Ele já tinha se metido em outras polêmicas anteriormente com outras piadas igualmente estúpidas de estupradores e mulheres feias e de orfãos no dia das mães, que nem valem a pena serem repetidas.

Se a situação e a punição de Rafinha já eram esquisitas antes (a Bandeirantes não contratou o cara justamente por ele ser mal educado e desbocado? Humm...) a cereja do bolo foi a notícia de que Wanessa, o maridão e o filho que ainda nem nasceu (!) entraram com uma ação de indenização e danos morais contra o humorista no valor de CEM MIL REAIS (!!!!).

Ok, pausa.

Tudo bem, vivemos numa sociedade em que qualquer um pode processar qualquer um por qualquer motivo que se ache justificado.  Isso é um direito inalienável e necessário para o funcionamento de uma sociedade civilizada.  No caso, a honra da família foi supostamente atingida e eles consideram que cem paus pagaria essa honra maculada. Mas, peraí, sou eu ou tem alguma coisa errada quando um humorista perde o emprego, é processado e hostilizado por fazer o que lhe pagam para fazer??

Tenho acompanhado a questão de perto nos meios de comunicação e redes sociais e estou curioso com o desenrolar do caso.  De uma forma ou de outra, a situação tem implicações éticas muito delicadas, resvalando em preceitos fundamentais como LIBERDADE DE EXPRESSÃO que, num país com uma democracia tão incipiente como a nossa, toma proporções muito mais complexas e graves.

Alguém, em sã consciência, realmente acredita que Rafinha Bastos tenha algum desejo de manter relações sexuais com um recém nascido?  Acredito que não.  O formato no qual ele fez a declaração era um programa de humor no qual, entende-se, não é para ser levado a sério.  Você não gosta do humor que Rafinha Bastos faz?  Não assista seus programas, não compre seu DVD, não vá a seus shows, ignore que ele existe.  Isso é a maravilha da democracia: você não é obrigado a consumir nada que considere ofensivo ou que não lhe agrade (falando de Brasil, muitas aspas aqui).

Se Wanessa e cia ganharem a ação, isso abre precedente para que?  Para que artistas tenham que entregar suas obras para aprovação antes de levá-las a público para não correr o risco de ofender os interesses de terceiros?  Ofender minorias tudo bem, desde que o lobby delas não seja forte o suficiente para supostamente se defenderem como os paladinos dos bons costumes de plantão estão fazendo?  De qualquer forma, além da óbvia hipocrisia do caso, eu sinto um cheiro nojento de censura nessa história toda.

Não estou defendendo Rafinha Bastos nem nenhum dos merdas que fazem o CQC.  Entretanto, quero pensar que eu moro num país onde eles podem dizer o que quiserem e falar o que quiserem enquanto existirem pessoas que querem ouvir o que eles tem a dizer ou achar engraçadas suas piadas.  Eu sei o tipo de humor que eu consumo - engraçado para uns, nem tanto para outros - e que EU tenho a liberdade de dizer um "vai tomar no cu" e mudar de canal instantaneamente cada vez que eu vejo aqueles caras de terno preto fazendo propaganda de refrigerante enquanto xingam o Congresso na minha TV.

Não quero ninguém decidindo isso por mim.


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Daytripper


Algumas obviedades que você provavelmente já ouviu por aí:
  1. Fábio Moon e Gabriel Bá são dois dos maiores artistas de quadrinhos brasileiros desde...  Bem, desde sempre.
  2. A qualidade e a diversidade que o gênero quadrinhos adquiriu nas últimas décadas e sua conseqüente diversificação de mercado permitiu que diferentes tipos de histórias pudessem ser contadas nesse formato, com resultados mais ou menos bem sucedidos.
  3. O Brasil não oferece nenhum reconhecimento a muitos dos talentos que tem, fazendo com que muitos deles tenham primeiro um reconhecimento “lá fora” do que por aqui.

Tudo verdade.

Quem acompanha o trabalho de Moon e Bá sabe do talento que os irmãos gêmeos sempre demonstraram em seu trabalho.  Porém, sinto que ainda faltava uma obra definitiva, uma união efetiva entre a arte e o texto, que justificasse a linguagem de arte seqüencial que eles inegavelmente dominam, onde o texto e a arte se complementam harmoniosamente, sem um se sobressair ao outro.  Daytripper, que acaba de ser lançada no mercado brasileiro pela Panini, veio para preencher essa lacuna.   





A obra foi originalmente lançada no mercado americano, pela Vertigo, selo de quadrinhos adultos da DC Comics.  Foi vencedor de diversos prêmios, inclusive o respeitado Eisner como melhor minissérie de 2011.  
Já no Brasil....

Enfim...

A obra é um primor em qualquer aspecto que se analise: a arte é arrebatadora e se encaixa perfeitamente no ritmo e fluidez da história.  Os personagens são humanos, demasiadamente humanos, e vamos acompanhando e nos identificando, através de suas vidas, o quanto temas como família, amizade, amor e morte são caros e relevantes a todos nós.
O fato da história se passar no Brasil, em diversas cidades, passa ao leitor brasileiro uma sensação de familiaridade ainda maior.  Mérito total da arte, os detalhes das pessoas, arquitetura e hábitos de várias cidades brasileiras, aumenta significantemente para nós a intimidade e identificação com a obra.



A narrativa da história é ousada, abusando de regressões temporais, cortes, idas e vindas no desenvolvimento da história, mas que nunca fica confuso, pretensioso ou difícil de acompanhar.  Nesse caso, ela serve justamente para desenvolver as complexidades e profundidades dos personagens, especialmente do protagonista Brás Oliva Domingos.  Outro ponto em que a dupla acertou em cheio!
A obra foi originalmente publicada como uma minisérie em dez edições.  A divisão dos capítulos sempre deixa o leitor com um nó na garganta quando um termina e outro começa.  Nos faz parar para coçar a cabeça e nos lembrar que todo dia pode ser um dia daqueles, onde tudo pode mudar e que não conseguiremos esquecer.

Não vou fazer um resumo do livro aqui porque creio que reduziria demais o conjunto de idéias profundas que Daytripper alcança. 


Saiba apenas que aqui ninguém tem super poderes ou vem de outro planeta.  Aqui as pessoas vivem suas vidas da melhor maneira que conseguem, tentando se relacionar com os que amam do jeito que sabem.  Como eu.  E como você.

É um trabalho muito bonito, que realmente emociona pela honestidade e carinho com que os personagens se desenvolvem e seguem seus destinos.   Uma obra de arte!