quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Mudanças decorrentes do sujeito mortalmente entediado



O cara acorda cedo todo dia, vai para o seu trabalho que não exige demais, volta para casa, come alguma coisa, vê um filme e vai dormir que dia seguinte é dia de levantar cedo. Está naqueles momentos meio bestas da vida, sem muitos amigos, sem grandes amores, sem grandes problemas emocionais, físicos ou financeiros. Não é velho, mas também já não é mais tão jovem assim. Já se sente mais confortável em sua pele, já se conformou que não vai ser um milionário, um astro do rock, um astronauta e que nunca vai comer nenhuma capa da Playboy. Ele já está consciente de seu papel no universo. Está tudo certo, ele acha. Mas algo está para mudar, independente de sua vontade consciente. Ele está mortalmente entediado!

O mundo gira e a Lusitana roda. E o que faz o mundo girar, o que fica escrito nas páginas da história – a minha, a sua e aquela dos livros – são fatos, ações e motivações individuais. A Mona Lisa não existiria se o cidadão não tivesse pego a tela e as tintas e colocasse a mão na massa. Da mesma maneira, você provavelmente não existiria caso papai não tivesse tido o desejo de chamar mamãe para “sair” (as aspas são para te poupar de qualquer detalhe gráfico desagradável que a sua imaginação possa te detalhar nesse momento). O fato é que – para a sua sorte – duas pessoas tiveram a vontade e o desejo individuais de ficarem juntas e foi esse desejo primeiro que desencadeou toda uma sucessão de eventos que resultou com o senhor lendo esse texto agora. O resto, como já disse, é história.

O que eu sempre achei curioso é de onde esse primeiro desejo aparece, o que origina essa fagulha determinante de uma série imprevisível de eventos que, em teoria, é infinita. É inclusive o tema de um documentário fictício que eu tenho na cabeça há tempos. Quando o cara vai escrever uma canção, de onde vem essa ideia original, qual é o momento do primeiro acorde, da primeira ideia sobre o que a canção tratará? Ou da primeira palavra do romance? Ou da primeira pincelada em um quadro? Não sou tão ingênuo a relevar o papel importantíssimo e fundamental do trabalho duro, da repetição, da técnica, do suor e tempo gasto na burilação do trabalho final. Mas e a coisa primeira, bruta? De onde vem?

Mas estou divagando.

Não acho que seja inclusive apropriado achar que existe uma ideia “primeira” ou “original” já que estamos simplesmente no meio de uma cadeia de eventos em que estamos simplesmente inseridos e fazemos a nossa parte, com nossa história, desejos e motivações, para que esse processo se perpetue indefinidamente. Tipo Cem Anos de Solidão, manja?

Claro que as pessoas não estão desenvolvendo teorias econômicas ou compondo sinfonias o tempo todo. A maioria do tempo, estamos preocupados com o que faremos no dia seguinte, ou o que tem na geladeira para comer, ou se vai chover ou não e se vale a pena pegar um guarda-chuva ou não. E cada decisão dessa é motivada por uma razão ou motivação pessoal e, muitas vezes, inconsciente.
Dessa forma, para efeitos didáticos de conversa de boteco, vamos isolar algumas motivações mais significativas. Aquelas que realmente mudaram a direção para onde nossa vida estava nos levando. Quando criamos ou destruímos algo ou mexemos com nossa zona de conforto. Vamos falar daquelas pontadas internas, daquela súbita certeza sobre algo que estava incerto até o segundo anterior, daquela clareza de pensamento que só aquele frio na barriga característico é capaz de oferecer. Os momentos quando temos essas revelações ficam cravados em nosso sistema e podemos lembrar facilmente até o que vestíamos, onde estávamos e como estava o tempo na hora que isso aconteceu.

Eu quero ter um filho.
Eu não quero ter um filho.
Eu vou morar em outro lugar.
Eu odeio esse emprego.
Eu tenho essa frase que não me sai da cabeça e preciso escrevê-la em algum lugar para tirá-la de meu sistema.
Eu gosto de caras, para os caras.
Eu gosto de minas, para as minas.
Eu vou deixá-lo.
Eu não vou mais viver assim.


Coisas assim.

Muitos fatores e sentimentos são precursores desse tipo de epifania. Os clássicos já sabemos: medo, tesão, insegurança, inadequação ao meio e coisa e tal. Aí nessa lista tem um que eu acredito ser bastante desconsiderado em conversas de bar ilustradas: o tédio!
O tédio é aquela torneira pingando durante a noite e que vai te deixando louco mas você tem preguiça de levantar para fechá-la direito. É um sapato velho, que começou a machucar seu pé, mas você não faz nada a respeito por estar muito acostumado a ele. Aí um dia o sujeito tem a tal da faísca e mete uma marreta na porra da torneira e taca fogo no sapato.
Essas decisões e posteriores consequências das ações oriundas do tédio é como aquele empurrão na pedra ladeira abaixo, da inércia para o movimento.

É aquela parada no meio do almoço, aquela olhada ao redor e a percepção que as coisas têm acontecido no automático há mais tempo do que você gostaria de admitir.

Sejamos realistas também. Acabaríamos todos tendo um aneurisma se estívessemos vivendo grandes emoções ou dores o tempo inteiro. Tem horas que dá vontade de só ver TV mesmo e tudo bem.
Porém o tédio, com seu cobertor confortável de plenitude, acaba se tornando eventualmente um importante fator de transformação. Se o cidadão estivesse na adrenalina da vida, fatalmente o caminho que ele inconscientemente escolheria para si seria outro.

O tédio é responsável pela formação de centenas de milhares de bandas de garagem – algumas que eu e você escutamos bastante, de movimentos artísticos, de divórcios e casamentos, de gente que surta e vai fazer trabalhos fantásticos que jamais fariam caso não estivessem entediadas até os ossos. É causa de incontáveis invenções e reinvenções.

Eu sou fã do tédio. O tédio salva. O tédio transforma.

Eu só não gosto muito é quando eu estou entediado.

Nenhum comentário: